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A metamorfose, de Franz Kafka

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O Dando a cara a tapa se propôs, desde sempre, a ser um espaço plural. Não só no sentido das idéias e dos comentários que abraça, como também, principalmente, dos temas que aborda. Não por acaso, há aqui quase duas dezenas de seções só para categorizar os assuntos que são tratados no Blog.

Uma das seções mais dedicadas deste espaço, todavia, tem sido relegada a segundo plano nos últimos tempos, seja por conta das imposições que a pauta da pandemia obviamente exige, seja em razão do inferno político diário que vivemos há mais ou menos uma década. Salvo por um ou outro post contendo o Bolão do Oscar, as Artes definitivamente não tem sido representadas com a dignidade que merecem deste espaço.

Para reparar esta falta, vamos hoje retomar a seção com uma de suas mais tradicionais abordagens: as resenhas literárias. E, para não desapontar o leitor amigo, o livro escolhido é um dos mais famosos e mais incompreendidos de todos os tempos: A metamorfose, de Franz Kafka.

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Tcheco de nascimento, germanófono por opção, Kafka teve uma criação diferenciada. Nascido naquilo que ainda era o Império Austro-Húngaro, Kafka nascera numa família judia de algumas posses. Não era uma família especialmente rica, mas certamente as privações dos pobres não fizeram parte de seu cotidiano. Seus pais enviaram-no para o Altstädter Deutsches Gymnasium, uma das melhores escolas da região. Lá ensinava-se, por óbvio, a língua de Goethe, e tal foi a dedicação que Kafka devotou a ela que ele passou a falar alemão melhor do que o próprio tcheco, que seria sua língua natal. De lá, o pequeno Franz saiu formado para tentar a vida como químico. Mas a vida como ensaísta de laboratório não duraria muito, e ele logo mudou-se para o ramo do Direito.

Seja por gosto, seja por temperamento, Kafka sempre foi um sujeito muito retraído. Não falava muito nem era dado a fazer facilmente amizades. Talvez por isso mesmo, devorava livros como uma traça. Lia Dostoiévski, Flaubert e Goethe como uma criança lia quadrinhos. Sua vontade de aprender era tanta que ele se esforçava até para ler Platão no original em grego. É impossível determinar em que ponto o leitor voraz deu lugar ao escritor profícuo, mas o fato é que, após a formatura como advogado, sua vida mudaria radicalmente.

Além das cartas que escrevia para a namorada, Kafka passou a escrever romances. Tal como ele, seus escritos denotam uma certa introspecção e uma sensação de desajuste do protagonista em relação ao mundo. O perseguido Joseph K. de O Processo, submetido a uma condenação judicial sem sequer saber do que é acusado – “Inocente do quê?”, lhe perguntam ao alegar inocência -, é provavelmente o melhor retrato dessa linha temática. Mesmo assim, essa talvez não seja a melhor obra do escrito tcheco.

A metamorfose é um dos seus primeiros escritos. Dez anos mais moço do que o imortal O Processo, A metamorfose é, de certa forma, mais “leve” que o primeiro. Em ambos o absurdo é a atmosfera reinante, mas em O processo a angústia parece pesar mais. Embora a diferença em número de páginas não seja assim tão gritante – O processo tem mais ou menos o dobro das cento e poucas páginas de A metamorfose -, a leitura do primeiro parece interminável, ao passo que a segunda flui até com certa rapidez.

A história começa com um sujeito chamado Gregor Samsa. Certa manhã, “ao despertar de sonhos inquietantes”, o rapaz acorda na “cama transformado num gigantesco inseto”. Muito embora o senso comum e a lenda urbana associem esse inseto a uma barata, o fato é que o artrópode não é citado em momento algum durante o livro. Tal como a maçã bíblica, a barata de Kafka só existe como produto da dedução literária.

Como se pode observar, o livro curiosamente não traz qualquer suspense. O fato principal da obra – a transformação do seu protagonista em um inseto – já se dá logo no começo, sem que nos seja explicado como ou por que isso aconteceu. O que Kafka faz é nos levar a um passeio para um angustiante passo seguinte: “E agora?”

Arrimo de família, Gregor Samsa já não pode mais trabalhar. O pai aposentara-se, a mãe cuida da casa e sua irmã, coitada, tem só dezessete anos e nenhuma formação curricular. Pior que isso, somente a descrição que Kafka faz da personagem que não sabe sequer lidar com o próprio corpo. As seis patas novas que Gregor Samsa ganha balançam desordenadamente sem que ele saiba sequer como manejá-las. O que era espanto da família acaba por se transformar em asco, asco esse que é refletido numa maçã que o pai de Gregor lhe atira, que fica incomodamente presa às costas, infeccionando-as.

Depois de alugar parte da casa a terceiros, visando a recuperar a renda perdida com a “transformação” de Gregor, os Samsa confinam-no ao seu quarto, de onde não pode mais sair. Daí pra frente, o que se tem é uma sucessão de fatos que acabam por transformar o sujeito que era o filho pródigo e irmão querido simplesmente em um animal nojento a ser evitado.

O que Kafka faz em A metamorfose, portanto, é expor o drama daquilo que acontece a uma família quando o sujeito responsável por mantê-la passa por algum tipo de tragédia. Em busca da sobrevivência financeira, os laços afetivos vão ser perdendo e tudo passa a girar em torno do peso que o antigo provedor agora representa para a família. No fundo, o que há é um verdadeiro processo de desumanização – a tal “metamorfose” do título -, de modo que, ao final, já não reste mais qualquer sombra do que Gregor Samsa fora anteriormente.

Apesar do drama psicológico, A metamorfose não traz uma leitura especialmente pesada. Há, claro, um convite para os tendentes à depressão ficarem ainda mais deprimidos. Mas, nesse particular, Kafka ainda fica longe de Goethe. Seja como for, trata-se de leitura obrigatória para quem quiser mergulhar nas profundezas das relações humanas e das hipocrisias que costumam cercá-las.

É o que você vai entender, lendo.


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